Sharenting é um termo que mistura partilha (share) e parentalidade (parenting),
designa o fenómeno de os pais publicarem fotografias, vídeos e
comentários dos filhos nas redes sociais, e ninguém tem dúvidas de que
esses conteúdos até possam ser os mais engraçados da vida dos miúdos.
Porém, querem ser eles a ter a última palavra.
A sós com a filha de 14 anos, rosadas do frio, com a estância de
esqui em fundo, Gwyneth Paltrow quis partilhar o momento no Instagram. “Mãe, já tínhamos falado sobre isto. Não podes publicar nada sem o meu consentimento”,
zangou-se a jovem Apple Martin, incomodada com a fotografia. “Mas se
nem consegues ver a tua cara!”, ripostou a atriz americana, dividida
entre ter pisado o risco ao expor a filha (ainda que de óculos
espelhados a cobrir-lhe o rosto) e ser descomposta em público por ela.
Crianças e adolescentes insistem cada vez mais com os pais para que não publiquem nada sobre eles sem o seu consentimento.
A blogger Catarina Beato percebe perfeitamente a irritação de Apple: “Falo
pouco do meu filho adolescente por acreditar que esta idade merece todo
o respeito. Se ele não gosta de exposição, quem sou eu?”,
questiona a antiga jornalista de economia, autora do blogue Dias de Uma
Princesa desde 2005. Por lá, fala de alimentação, viagens, peso,
poupança e outros temas que exporia num café se estivesse a conversar em
voz alta com uma amiga, filhos incluídos. Mas à vontade não é “à
vontadinha”.
“Demorei bastante a escrever um post sobre adolescência
porque queria dizer o que sinto dos medos, do cansaço, sem falar da vida
do meu adolescente em particular”, recorda Catarina Beato, que hoje em
dia só ainda não pergunta a opinião a Maria Luiza, de dois anos: “O Afonso, de sete, já quer ter voto na matéria e eu aceito, embora adore aparecer”, conta.
Quanto a Gonçalo, 17 anos, é muito tímido e continua a pedir-lhe que não publique nada sobre ele, algo que a mãe respeita.
Quanto a Gonçalo, 17 anos, é muito tímido e continua a pedir-lhe que não publique nada sobre ele, algo que a mãe respeita.
Segundo os especialistas, esta é uma reação que irá ganhar força no
futuro, à medida que os mais novos insistem com os adultos para não
postarem à revelia. “Grande parte das crianças e adolescentes cujos pais
publicaram sobre os filhos sem consentimento – fossem comentários,
fotografias ou vídeos – ficaram aborrecidos com isso e pediram-lhes que
os retirassem”, adianta a investigadora Cristina Ponte, responsável pelo
relatório EU Kids Online Portugal de 2018, divulgado em
fevereiro deste ano para ampliar o que sabemos sobre usos, riscos e
segurança na internet das crianças europeias.
“Alguns chegaram a receber comentários negativos ou ofensivos de colegas devido a conteúdos publicados pelos pais sobre eles”,
alerta ainda a professora de comunicação da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. Já para não falar dos
amigos que publicam constantemente coisas uns sobre os outros, sem
perguntarem primeiro se podem, a configurar 25% dos casos num universo
de mais de 1800 respostas, em miúdos entre os 9 e os 17 anos.
Ao que parece, todos estão a começar a encaixar que o seu rasto
digital começa muito antes de eles próprios se terem tornado ativos online,
sem controlo naquelas fotos da mãe a mudar-lhes a fralda ou a dar-lhes
banho em pequenos. E não estão satisfeitos com os adultos: 28% dizem que
os pais publicaram conteúdos sem lhes perguntarem se estavam de acordo,
13% ficaram incomodados com essas partilhas e 14% pediram-lhes que os
retirassem, tão melindrados com os progenitores como Apple Martin ficou
com a mãe.
“Eles têm o direito a viver este espaço digital com a
garantia de privacidade e de serem ouvidos nessa opção. Direito a
definir como é que os outros lhes fazem referência”, reitera Cristina Ponte, ciente de que qualquer partilha online
fica para sempre e nunca será vista apenas pelo círculo de pessoas mais
chegadas. “Os pais devem pensar antes de publicar. E depois envolver a
criança ou adolescente para saber se se importa, ou não, que o façam”,
diz.
Foi o que decidiu Sónia Morais Santos, autora do blogue Cocó na
Fralda e mãe de quatro: Manuel de 17 anos, Martim de 14, Madalena com
nove e Mateus de quatro. “Comecei a contar as peripécias da
família em 2008, um dia o meu mais velho não gostou de qualquer coisa
(não me lembro o que era) e a partir daí acabou-se”, lembra a
ex-jornalista. Nunca mais postou sobre os crescidos sem autorização, e
nada além de uma piada ou resposta mais bem dadas. “Mesmo a Madalena já
está no grupo daqueles a quem pergunto.”
Com o Mateus são histórias amorosas, não acha que seja um problema, mas os mais velhos deixaram de aparecer. “Se sucede algum episódio que me apetece partilhar, vejo primeiro com eles se se importam”, afirma a blogger,
considerando que o que é da esfera íntima fica em casa, não há cá
confusões. Ninguém sabe em que área está o Manuel, se são bons ou maus
alunos, se saem à noite, se têm namorada ou namorado, se alguma vez
beberam. «Justamente porque têm as suas vidas e não têm de as ver
expostas no blogue da mãe», aprova.
Quem também aplaude são os investigadores Sara Pereira, Luís Pereira e
Manuel Pinto, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da
Universidade do Minho. Juntos escreveram o booklet Internet e redes sociais: tudo o que vem à rede é peixe?
para que os internautas percebam que o que publicam pode ser lido ao
minuto por um público extenso e permanece na rede mesmo depois de
removido, razão por que nunca devem pôr em causa a privacidade de quem
quer que seja.
Uma outra pesquisa da AVG, empresa de programas de proteção de
computadores, salienta que pais, tios e avós publicam fotografias e
vídeos dos seus bebés, o que faz com que 82% das crianças tenham a imagem na internet antes de completarem dois anos.
Ainda mais preocupante: são os pais quem revela maior quantidade de
dados pessoais dos filhos, através da partilha de conteúdos de elevada
intimidade, e os ajudam a criar perfis nas redes sociais antes de terem
idade para abrir conta.
O facto de as pessoas pensarem que só quem está ligado ao seu perfil tem acesso às imagens publicadas cria uma falsa sensação de segurança.
“O facto de as pessoas pensarem que só quem está ligado ao
seu perfil tem acesso às imagens publicadas cria uma falsa sensação de
segurança”, explica Tito de Morais, fundador do site MiúdosSegurosNa.Net para promover a segurança online
dos mais novos. No limite, diz, “é útil partir do princípio que o que
fazemos em privado se pode tornar público, mesmo o que não publicamos”. E
então agir com bom senso: nem encher o mural de imagens das crianças,
que irão apreciar ter controlo sobre a sua identidade, nem diabolizar as
redes sociais, que só se tornam boas ou más dependendo do uso que
fizermos delas.
De resto, esse foi sempre um cuidado que Fernanda Velez teve com o
Blog da Carlota (um dos blogues portugueses de maior alcance, com um bom
gosto digno de revista de interiores), que criou quando a sua mais
velha tinha quatro meses (tem agora sete anos). “Estava
encantada com a maternidade, com as roupas que comprava para a bebé, e
comecei a partilhar o que vestia à Carlota com os links das marcas portuguesas”,
conta a empreendedora. Era ela a postar imagens da filha no Instagram e
as lojas a esgotarem os modelos infantis e os que ela mesma usava.
Passados uns meses fazia os Mercaditos da Carlota com novidades de moda
para mães e crianças, uma extensão do reconhecimento público.
“A Carminho nasceu três anos depois, no início só apareciam
elas, e o que eu senti foi que de repente passou tudo a mostrar os
filhos como eu nunca mostrei as minhas, em birras ou situações que as
diminuíssem”, nota Fernanda, que entretanto já publica mais
imagens suas do que delas. Por mais que os seguidores possam pensar que
as conhecem, não veem ali mais do que a moda que existe nas suas vidas,
nenhuma intimidade. “A Carlota adora aparecer, a Carminho ainda não sabe
o que é ter presença online, mas o que é certo é que nunca irão ter uma foto que as envergonhe”, assegura a mãe.
Os jovens não são nem nativos digitais, nem ignorantes digitais.
E neste ponto importa acrescentar que os jovens não são nem nativos
digitais, nem ignorantes digitais, destaca a investigadora em
comunicação Cristina Ponte, desmistificando a ideia de que os miúdos,
hoje, já nascem agarrados aos ecrãs: “Nem nascem ensinados e a saber
tudo da internet e das novas tecnologias, nem são uns coitadinhos
desprotegidos num ambiente que só tem riscos.”
Para a responsável do relatório EU Kids Online Portugal,
muitos deles apenas desejam que os pais acompanhem mais o que fazem,
pelo que existe aqui margem para se trabalhar com eles uma série de
competências sociais e emocionais, que lhes permitam desenvolver
melhores competências digitais. “A começar por conseguirem lidar com as
críticas, positivas ou negativas, e com a frustração que daí vem. Porque
isso faz parte da vida, o terem essa noção de até onde se querem
expor”, remata a docente.
Na dúvida, são estas as imagens que nunca, em circunstância alguma, devem ser publicadas:
AS DE CRIANÇAS NUAS, DE FRALDA, NO BANHO.
Inocentes aos olhos da maioria das pessoas, podem tornar-se um prato cheio para utilizadores maldosos que as ponham a circular em redes criminosas ou façam um uso ainda mais abusivo das informações obtidas nas redes sociais.
AS DE CRIANÇAS COM UNIFORMES ESCOLARES.
A partir de uma farda é possível identificar a escola que a criança frequenta, por vezes até o ano. Se além disso a rede social divulgar o nome dos pais, dos menores e uma série de outros dados pessoais, não é descabido pensar que possa haver problemas mais cedo ou mais tarde.
AS QUE PODEM CAUSAR CONSTRANGIMENTO NO FUTURO.
Por muito engraçada que uma foto possa parecer na altura em que é tirada, os pais devem lembrar-se de que as suas crianças não gostarão de se ver expostas ao ridículo. Imagens embaraçosas à solta na rede podem vir a ser usadas em situações de bullying ou outras igualmente danosas.
AS DAS CRIANÇAS DOS OUTROS.
Tal como qualquer pai tem o direito de exigir que uma foto do filho seja retirada quando postada sem autorização, deve lembrar-se de perguntar aos outros pais se pode publicar imagens em que as crianças deles apareçam, como aquelas que são habitualmente tiradas em passeios de turma ou festas de aniversário.
AS DE CRIANÇAS COM OBJETOS DE VALOR.
À partida, os amigos ficarão contentes com o sucesso dos pais e a alegria dos mais novos, mas para quê chamar a atenção para os bens materiais da família? Ou fazer o seu filho correr riscos desnecessários apenas porque ganhou um iPad topo de gama de presente e publicou uma foto a exibi-lo?
AS QUE PERMITEM IDENTIFICAR ONDE FORAM TIRADAS.
Os smartphones e algumas câmaras vêm equipados com um geolocalizador que identifica e torna público nas redes sociais o local onde cada foto é tirada. Desative-o para não correr o risco de as fotografias darem a terceiros informações que só lhe interessam a si.
AS DE ALTA RESOLUÇÃO.
Uma vez que perdemos o controlo das imagens quando as colocamos na internet, é preferível partilhar com os amigos as de baixa resolução, menos fáceis de editar, manipular e utilizar.
AS QUE DÃO PISTAS DE ONDE MORA.
Os miúdos estão mais giros a cada dia que passa, fizeram uma graça que queremos partilhar e, sem querer, acabamos a mostrar nas imagens uma loja conhecida, aqueles prédios de cor tão particular e outros pontos de referência do lugar onde moramos. Por muito pouco paranoica que uma pessoa seja, há certas coisas que é preferível manter na esfera privada.
Sem comentários:
Enviar um comentário