Publicado na Sábado em 31 de março de 2019.
Para ler o artigo na íntegra, clique AQUI.
Estamos a passar os dez minutos de um vídeo de SirKazzio, o youtuber
português com mais seguidores (uns impressionantes 5,1 milhões – muitos
são brasileiros). Quem faz a pergunta do cocó é David Carreira, cantor
pop e filho de Tony Carreira, e os dois estão sentados num sofá em casa
do youtuber. A ideia é tirar à vez uns papelinhos que estão
numa caneca. Em cada papelinho estão perguntas como a do cocó e, para
sorte de David Carreira, quem tem de responder é SirKazzio.
Para tornar a coisa ainda mais difícil, David Carreira diz que o chocolate, além de saber a cocó, deve também "cheirar a cocó", mas depois troca-se um pouco a falar, o que é motivo para uma boa risada, porque "entre cocó e chocolate, uma pessoa fica baralhada...", e SirKazzio responde finalmente que prefere comer cocó com sabor a chocolate. "Mas tem cheiro a cocó", lembra David Carreira. "Tapo o nariz...", responde o outro.
Nos comentários ao vídeo (que tem como título Preferias Andar Nu Na
Rua?! Com David Carreira), praticamente só se veem – a avaliar pelas
fotos de perfil – crianças e adolescentes, muitos ainda com dificuldades
a Língua Portuguesa (exemplo: "És só tu que eu ouso as tuas musicas").
É um fenómeno transversal a estes canais de YouTube, quase tanto como a aparição do próprio David Carreira neles. Só em 2018, e de forma involuntária e inesperada, encontrámo-lo em 14 vídeos de youtubers (incluindo dois brasileiros: Luiz Mariz e Gioh) - o que indicia uma estratégia de posicionamento do cantor de 27 anos no mercado escolar EB 2/3.
Ei-lo, por exemplo, em Na Cama com David Carreira (youtuber Helena Coelho), Em Madrid com o David Carreira e Lap Dance ao David Carreira (ambos com Olivia Ortiz), Entrei no Vídeoclipe do David Carreira (Angie Costa), O David Carreira Ensina Como Ficar Bem Nas Fotos (Beatriz Leonardo) ou Desafiei o David Carreira e Deu Nisto (Inês Ribeiro).
SirKazzio chama-se, na vida civil, Anthony Sousa. Tem 26 anos e o ligeiro sotaque advirá de ter nascido na Venezuela. O cabelo pintado de vermelho fluorescente segue as tendências deste target.
No essencial, do que foi possível ver, estes canais de maior sucesso assentam em quatro fórmulas:
1. Rubricas. Por exemplo, coisas que não sabe sobre. Ou vídeos engraçados do YouTube e vejam como eu reajo a vê-los. Ou perguntas de escolha obrigatória entre chocolate que sabe a cocó ou cocó que sabe a chocolate;
2. Jogos de computador;
3. Coisas que os adolescentes fazem quando estão juntos, como se estivessem em viagens de finalistas a Benidorm, mas tudo passado cá. Chamam-lhes trolladas.
A vertente 2, à primeira vista, parece a mais comum. É por isso que estes canais estão carregados de arrotos, puns, piretes, palavrões e aquilo a que chamam trolladas (as partidas que pregam uns aos outros).
São vídeos onde as pausas e as vírgulas continuam a existir, mas sobrevivem com três bengalas: o mano, o puto e o tipo. Exemplo: "Como é que é, puto, queres ir tipo lá a casa, tipo, jogar um jogo, mano?"
É um fenómeno transversal a estes canais de YouTube, quase tanto como a aparição do próprio David Carreira neles. Só em 2018, e de forma involuntária e inesperada, encontrámo-lo em 14 vídeos de youtubers (incluindo dois brasileiros: Luiz Mariz e Gioh) - o que indicia uma estratégia de posicionamento do cantor de 27 anos no mercado escolar EB 2/3.
Ei-lo, por exemplo, em Na Cama com David Carreira (youtuber Helena Coelho), Em Madrid com o David Carreira e Lap Dance ao David Carreira (ambos com Olivia Ortiz), Entrei no Vídeoclipe do David Carreira (Angie Costa), O David Carreira Ensina Como Ficar Bem Nas Fotos (Beatriz Leonardo) ou Desafiei o David Carreira e Deu Nisto (Inês Ribeiro).
SirKazzio chama-se, na vida civil, Anthony Sousa. Tem 26 anos e o ligeiro sotaque advirá de ter nascido na Venezuela. O cabelo pintado de vermelho fluorescente segue as tendências deste target.
No essencial, do que foi possível ver, estes canais de maior sucesso assentam em quatro fórmulas:
1. Rubricas. Por exemplo, coisas que não sabe sobre. Ou vídeos engraçados do YouTube e vejam como eu reajo a vê-los. Ou perguntas de escolha obrigatória entre chocolate que sabe a cocó ou cocó que sabe a chocolate;
2. Jogos de computador;
3. Coisas que os adolescentes fazem quando estão juntos, como se estivessem em viagens de finalistas a Benidorm, mas tudo passado cá. Chamam-lhes trolladas.
A vertente 2, à primeira vista, parece a mais comum. É por isso que estes canais estão carregados de arrotos, puns, piretes, palavrões e aquilo a que chamam trolladas (as partidas que pregam uns aos outros).
São vídeos onde as pausas e as vírgulas continuam a existir, mas sobrevivem com três bengalas: o mano, o puto e o tipo. Exemplo: "Como é que é, puto, queres ir tipo lá a casa, tipo, jogar um jogo, mano?"
É um tique geracional. O youtuber RicFazeres
– que só se dedica a jogos de computador à noite, de dia trabalha no
Metropolitano de Lisboa – usa como bengalas velho e Zé. Não por acaso,
está com 40 anos.
A vertente 3, a exposição da vida privada, pode causar alguma estranheza para quem não partilha desta ideologia de vida e de negócio.
Por exemplo, SirKazzio publicou a 9 de dezembro um vídeo intitulado O parto da nossa bebé - Emma. A mãe, acabada de o ser, aparece no quarto do hospital com a filha, acabada de nascer. Mas SirKazzio está furioso. O que queria mesmo publicar era o parto – que filmou, porque "vocês poderiam ver o nascimento dela e acho que seria uma cena linda" –, mas o YouTube não deve ter gostado de algum eventual conteúdo explícito e removeu as imagens.
A vertente 3, a exposição da vida privada, pode causar alguma estranheza para quem não partilha desta ideologia de vida e de negócio.
Por exemplo, SirKazzio publicou a 9 de dezembro um vídeo intitulado O parto da nossa bebé - Emma. A mãe, acabada de o ser, aparece no quarto do hospital com a filha, acabada de nascer. Mas SirKazzio está furioso. O que queria mesmo publicar era o parto – que filmou, porque "vocês poderiam ver o nascimento dela e acho que seria uma cena linda" –, mas o YouTube não deve ter gostado de algum eventual conteúdo explícito e removeu as imagens.
SirKazzio estava triste, até porque, antes da remoção, o vídeo "estava a
explodir em termos de visualizações e likes". Aparentemente, tudo isto
parece apenas uma tontice, mas há um pouco mais do que isso.
A caça ao like e o Artigo 13
Uma das principais características destes canais de YouTube são os contínuos pedidos para os fãs porem likes, ou subscreverem o canal, ou fazerem comentários ou partilhas em todas as redes sociais que puderem e conseguirem.
É uma ladainha insistente em cada vídeo. A razão, que nunca é revelada nestes termos, é simples: os youtubers recebem dinheiro em função do tráfego online dos seus vídeos, como visualizações e likes. Quanto mais "envolvimento" o vídeo tiver, mais anúncios pode receber e mais caros eles podem ser.
Desde 2013 que é possível, em Portugal, ganhar dinheiro com publicidade no YouTube, e desde 2017 que é imposto um limite mínimo de 10 mil visualizações para um vídeo poder ter publicidade.
É comum ouvir um youtuber lançar desafios como "se na próxima meia hora eu tiver 1.000 likes faço isto ou aquilo". O que pode parecer um inocente pedido de apoio moral ou a promessa de uma nova brincadeira divertida – quem sabe mais uma trollada no mano que está agora na casa-de-banho a fazer cocó, puto –, mais não é do que alguém a fazer negócio.
Quando SirKazzio lamentou, desolado, a censura do YouTube ao parto da sua filha na altura em que o vídeo "estava a explodir em termos de visualizações e likes", lamentava-se provavelmente da perda de um bom negócio.
Veja-se como SirKazzio termina o vídeo do cocó com David Carreira: "Deixem o vosso like, não se esqueçam de partilhar o vídeo por todas as vossas redes sociais, que isso ajuda bastante, em qualquer rede social serve, até pelo WhatsApp, já sabem como é que funciona, é só partilharem o link para pessoas que não conheçam o canal, assim chegam sempre pessoas novas ao canal. E comentem muito."Por exemplo, no final deste vídeo o youtuber Wuant pede 150 mil likes e em troca faz "mais cenas destas".Dito de outro modo, por trás de um youtuber a fazer conteúdos patetas, está na verdade um profissional liberal a fazer pela vida.
Quando vários youtubers vieram há poucas semanas anunciar "o fim da Internet como a conhecemos", o fim do YouTube na Europa, mais o fim da liberdade de expressão e o fim da criatividade, etc, etc – tudo devido ao famigerado Artigo 13 aprovado no Parlamento Europeu, que pretende trazer para a Internet alguma da legalidade que existe na vida civil, neste caso sobre direitos de autor –, estavam na verdade a ver no horizonte o hipotético fim dos seus negócios. Em alguns casos o único meio de subsistência.
O famoso youtuber Wuant fez um vídeo (apocalipticamente intitulado O Meu Canal Vai Ser Apagado) para perguntar "se a nossa geração está preparada para sofrer uma cena assim? Nós não estamos prontos para lidar com o desaparecimento disto tudo. A nossa vida depende da Internet".
A caça ao like e o Artigo 13
Uma das principais características destes canais de YouTube são os contínuos pedidos para os fãs porem likes, ou subscreverem o canal, ou fazerem comentários ou partilhas em todas as redes sociais que puderem e conseguirem.
É uma ladainha insistente em cada vídeo. A razão, que nunca é revelada nestes termos, é simples: os youtubers recebem dinheiro em função do tráfego online dos seus vídeos, como visualizações e likes. Quanto mais "envolvimento" o vídeo tiver, mais anúncios pode receber e mais caros eles podem ser.
Desde 2013 que é possível, em Portugal, ganhar dinheiro com publicidade no YouTube, e desde 2017 que é imposto um limite mínimo de 10 mil visualizações para um vídeo poder ter publicidade.
É comum ouvir um youtuber lançar desafios como "se na próxima meia hora eu tiver 1.000 likes faço isto ou aquilo". O que pode parecer um inocente pedido de apoio moral ou a promessa de uma nova brincadeira divertida – quem sabe mais uma trollada no mano que está agora na casa-de-banho a fazer cocó, puto –, mais não é do que alguém a fazer negócio.
Quando SirKazzio lamentou, desolado, a censura do YouTube ao parto da sua filha na altura em que o vídeo "estava a explodir em termos de visualizações e likes", lamentava-se provavelmente da perda de um bom negócio.
Veja-se como SirKazzio termina o vídeo do cocó com David Carreira: "Deixem o vosso like, não se esqueçam de partilhar o vídeo por todas as vossas redes sociais, que isso ajuda bastante, em qualquer rede social serve, até pelo WhatsApp, já sabem como é que funciona, é só partilharem o link para pessoas que não conheçam o canal, assim chegam sempre pessoas novas ao canal. E comentem muito."Por exemplo, no final deste vídeo o youtuber Wuant pede 150 mil likes e em troca faz "mais cenas destas".Dito de outro modo, por trás de um youtuber a fazer conteúdos patetas, está na verdade um profissional liberal a fazer pela vida.
Quando vários youtubers vieram há poucas semanas anunciar "o fim da Internet como a conhecemos", o fim do YouTube na Europa, mais o fim da liberdade de expressão e o fim da criatividade, etc, etc – tudo devido ao famigerado Artigo 13 aprovado no Parlamento Europeu, que pretende trazer para a Internet alguma da legalidade que existe na vida civil, neste caso sobre direitos de autor –, estavam na verdade a ver no horizonte o hipotético fim dos seus negócios. Em alguns casos o único meio de subsistência.
O famoso youtuber Wuant fez um vídeo (apocalipticamente intitulado O Meu Canal Vai Ser Apagado) para perguntar "se a nossa geração está preparada para sofrer uma cena assim? Nós não estamos prontos para lidar com o desaparecimento disto tudo. A nossa vida depende da Internet".
(...) trollada das mulheresA presença feminina neste campeonato é, regra geral, menos adepta da trollada e mais ligada aos cuidados de beleza e lifestyle. Uma das mais famosas é SofiaBBeauty
(264 mil seguidores), que começou em 2012 com 12 anos. Hoje com 17
anos, mantém o seu canal civilizado e limpo de cocós. O sucesso
arrasta-se ao Instagram (288 mil seguidores), com consequente apelo das
marcas.
Mais próximo da trollada masculina estão as duas mulheres mais seguidas no YouTube em Portugal: Owhana (434 mil seguidores e SEA 3P0 (797 mil seguidores).
Mais próximo da trollada masculina estão as duas mulheres mais seguidas no YouTube em Portugal: Owhana (434 mil seguidores e SEA 3P0 (797 mil seguidores).
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